Laboratório Experimental de Ciência Cidadã, Cultura Oceânica e Tecnologia
Direito das Zonas Costeiras e Territórios Hidrossociais
No início do século XX, o uso e a exploração dos recursos naturais deixou de ter uma abordagem doméstica, dando origem a uma série de tratados e convenções, com jurisdições nacionais e internacionais. Em ordem cronológica, temos alguns marcos do que posteriormente seria chamado como Direito Ambiental: em 1931, a Convenção para a Regulamentação da Pesca da Baleia; em 1946, a Convenção Internacional da Pesca da Baleia; em 1951 o Tratado da Antártida; e, em 1972, a Conferência Internacional sobre Meio Ambiente de Estocolmo, promovida pela Organização das Nações Unidas (ONU) - que revelou uma forte divergência entre as percepções ambientais e os interesses econômicos dos países dos hemisférios Norte e Sul, separados por níveis totalmente díspares de desenvolvimento e qualidade de vida.
Nos anos 1990 foram criados muitos dispositivos jurídicos sobre o meio ambiente, e com isso surgiu a noção de Direito Ambiental como um instrumento normatizador de bens ecossistêmicos comuns, porém que compreende a Natureza como um objeto para uso e exploração humana.

Fonte: Prefeitura de Ubatuba
Quase cem anos depois, surge o debate acerca dos Direitos da Natureza em um cenário global que aponta para os limites ecossitêmicos. O conceito, reconhecido pela Constituição da República do Equador (2008) ao declarar os direitos da Pachamama e pela Constituição do Estado Plurinacional da Bolívia (2009), provoca uma mudança significativa na noção de direitos que, até então, permanecia vinculada a uma pessoa jurídica. Esses textos fazem parte do chamado Novo Constitucionalismo Latino Americano, caracterizado pela democratização das constituições, e pelo reconhecimento de cosmovisões andinas - além de atribuirem o estatuto de pessoa a seres e agências não-humanas.
O ciclo hidrocosmológico andino descreve as relações físico-natural e metafísico-cosmológica com a água por meio das suas experiências que interconectam fatores físicos, humanos e espirituais. Os ritos e mitos da água desempenham um papel fundamental, e envolvem: orar pela chuva durante períodos de seca severa e realizar festivais em períodos que antecedem a temporada de irrigação, com o oferecimento de ofertas próximas às fontes ou entradas de água.
Uma abordagem que reconhece a Natureza como possuidora de valores intrínsecos, independente da utilidade que possa oferecer aos seres humanos. Um princípio também declarado na Carta da Terra (2000), que aponta inovações jurídicas responsivas às reivindicações das agendas político-econômicas do mundo atual, e produz novas relações de representação e mediação envolvendo os ecossistemas e seus recursos.
As Zonas Costeiras são áreas de extrema relevância para aplicação desse conceito, por serem compostas de um sistema diverso composto por estuários, restingas, costões rochosos, manguezais, e marismas. São áreas submetidas a variações climáticas, geomorfológicas e oceanográficas, que abrigam uma grande diversidade de espécies, em vários grupos taxonômicos.
Atualmente, a maior parte da população do planeta encontra-se em Zonas Costeiras, transformando-as em Territórios Hidrossociais - já que têm a água como o resultado da interação entre ambiente-tecnologia-sociedade, assim como na materialidade de suas dinâmicas. A manutenção da vida das populações costeiras (de diferentes espécies) depende do equilíbrio dos ecossistemas costeiros como um todo, desde as bacias de recepção e drenagem, as águas interiores próximas à costa, até o próprio sistema marinho.

Fonte: Brasil de Direitos
São áreas que apresentam uma grande variedade de serviços ecossistêmicos, mas ao mesmo tempo estão vulneráveis aos cenários ligados às mudanças climáticas e ambientais, como a acidificação e a mudança da temperatura nos Oceanos, ao grande volume de lixo, aos vazamentos de petróleo e elementos tóxicos, a pesca e caça predatórias, ao aumento do nível dos mares e oceanos, entre outros.
Por isso, se faz necessário, promover um questionamento relativo à renegociação dos Direitos das Zonas Costeiras e Territórios Hidrossociais, e sobre quem consiste o seu sujeito de direitos, para romper com o padrão de exploração indiscriminado, baseado na crença da regeneração infinita desses ecossistemas.
Ao reconhecermos as Zonas Costeiras e os Territórios Hidrossociais como sujeito de direitos, teorias e práticas jurídicas poderão reivindicadas como espaços de renegociação, por parte não somente dos grupos diretamente afetados em busca de uma justiça democrática, mas em nome de uma representação jurídica dessas áreas em si.
Uma posição que desafia a divisão fundante do Estado moderno entre a natureza e a cultura, que criou distâncias entre povos de acordo com percepções ocidentais - a respeito de sua proximidade maior com o meio ambiente ou com a temporalidade histórica. Uma divisão que permitiu ao Estado operar por hierarquizações entre aqueles tidos como sujeitos juridicamente representáveis e aqueles designados como objetos desprovidos de agência a serem representados por cientistas.
Essa discussão levanta questões que ainda estão em aberto: Em que medida é sustentável e coerente aplicar a noção moderna de direitos quando falamos de outras relações com essas áreas? Quem deveria consistir o sujeito de direitos das Zonas Costeiras e os Territórios Hidrossociais em frente a uma perspectiva de generalizada e complexa crise ecológica, econômica, política e social?
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