Skip to the content.

Laboratório Experimental de Ciência Cidadã, Cultura Oceânica e Tecnologia

Repositórios Abertos e Práticas de Cuidado

Nas últimas décadas, o cenário da Cultura Digital no Brasil passou por grandes oscilações. No início dos anos 2000 haviam muitas iniciativas voltadas à democratização do acesso à internet - cabe ressaltar que nessa época, apenas uma pequena parcela da população tinha acesso a dispositivos de comunicação, e a maioria dessas propostas eram realizadas por iniciativas coletivas sem suporte formal.

Em um dado momento, olhando estrategicamente para esse contexto, e de uma forma quase experimental, houve o reconhecimento institucional sobre a importância dessas iniciativas. Com isso, surgiram políticas públicas voltadas para implementação de oportunidades para transformação mediada por tecnologias que na verdade eram frutos de iniciativas distribuídas semeadas anteriormente. Mas pouco depois, na metade da década de 2010, houve o esvaziamento desse cenário.

Um exemplo literal é portal culturadigital.br, que costumava ser financiado e mantido pelo Ministério da Cultura (MinC) e pela Rede Nacional de Pesquisa (RNP). A plataforma baseada em software livre, que hospedava a documentação de diversos projetos e iniciativas coletivas, hoje não existe mais. Ela foi removida durante a gestão de Jair Bolsonaro (2019-2022), que também havia encerrado as atividades do ministério, transformando-o em Secretaria.

Esse caso, certamente não isolado, nos leva a problematizar sobre a importância de cuidar para quem e onde “confiamos” a guarda de acervos coletivos. Assim como, alertar sobre a necessidade da criação e manutenção de repositórios abertos, em um momento que humanidade vive a desmaterialização e a desintegração da produção artística, científica e cultural. Compreendendo, também, a maneira que esses repositórios possam vir a apoiar comunidades (locais ou distribuídas) como ambientes seguros de troca e experimentação, em contraponto à monocultura das plataformas sob gestão de big techs.

Nesse contexto, a palavra cuidado pode ser explorada em dois sentidos. O primeiro deles é concreto e prático, embora também afetivo: o cuidado no sentido de manutenção, de cuidar daquilo que é importante para que esteja e continue acessível, não se desatualize. Pensar em estruturas que considerem uma documentação viva, ou seja, uma documentação digital com compartilhamento que “acontece enquanto as coisas acontecem”.

Plataformas wikis mostram-se uma alternativa potencial nesse sentido, por permitirem um formato de edição colaborativo e intuitivo, que independe de habilidades de programação ou acesso a servidores. Em contrapartida, precisam da “jardinagem”: uma analogia ao cuidado necessário para manutenção de jardins, que remete à ação concreta de cultivo, checagem, investimento de tempo e compromisso. Já que um wiki precisa ser planejado desde a hierarquia de seu conteúdo, até a moderação, revisão e edição para que mantenha sua contínua atualização.

Outro desafio é conceber uma infraestrutura para sistematizar projetos, narrativas e arquivos coletivos, que seja atrativa e esteja disponível para outras pessoas fora daquela bolha específica, garantindo assim a externalização dessa documentação em um formato compartilhável para outros públicos. Sob essa perspectiva, desenvolvemos o Divisor de Águas, uma ferramenta baseada em Python que automatiza a criação de um site com tecnologia Jekyll a partir de um repositório Git - nesse caso, o backup da fonte.wiki.

divisor.png

Divisor de Águas é uma expressão popular que tem origem na geografia física, onde representa uma formação de relevo, como uma montanha ou serra, que separa diferentes bacias hidrográficas, direcionando as águas para distintos rios ou mares.

A intenção da ferramenta é fornecer uma maneira simples e flexível de gerar um site estático a partir de conteúdos selecionados, sem a necessidade de configuração manual de um ambiente, ou de gerenciar o processo de conversão de conteúdo. Também estabelece uma diferenciação, uma divisão das interfaces entre o wiki - que funciona como um ambiente de organização, trabalho e sistematização para quem o alimenta, e o site estático customizado com a Identidade Visual, logotipo, fontes, e direcionamento para url específica, de acordo com cada demanda.

Voltando para a palavra cuidado, também há um segundo significado mais subjetivo que remete ao aviso de perigo iminente e soa como um alerta para o universo dos arquivos digitais pertencentes aos coletivos e comunidades de interesse. É sobre a importância de considerar os múltiplos perigos: do desaparecimento, da desatualização, da violação e exposição de dados, ou mesmo de que um determinado conteúdo seja usado de maneiras contrárias às intenções originais de quem os publicou. O cuidado aqui aponta que existe uma fronteira que (quando ultrapassada) pode expor, fragilizar, esvaziar esse conteúdo - o que pode ser danoso e irreversível para aqueles que têm apreço por ele.

Infelizmente, comunidades de interesse, grupos de ativismo e até mesmo centros de pesquisa e ensino caíram na logíca dos algoritmos das plataformas digitais em busca de engajamento e visibilidade, seguindo a máxima de que quanto mais exposto, mais recompensado. Para ganhar escala frequentemente entram em trends e publicizam suas fragilidades, por acreditarem que estão em um processo de validação, reconhecimento, inclusão e participação social. A maior parte das vezes, não compreenderem que seus dados e conteúdos são o produto comercializado. Depositando, ainda, todo resgistro documental em sites que podem desaparecer a qualquer momento, sem nenhum tipo de acesso ao backup.

Se no passado uma das grandes problematizações sobre a inclusão era sobre o acesso, hoje é sobre elucidar as pessoas onde estão sendo incluídas e o que cada um desses ambientes pode proporcionar. Se antes o principal desafio era levar o sinal para populações em lugares de vias de díficil acesso (ribeirinhos, indigenas, quilombolas, pescadores, etc), atualmente falamos em instalações de data centers que causam grandes impactos ambientais, e das instabilidades que eventos climáticos extremos podem gerar nas infraestruturas, causando grandes apagões de conexões e perda de dados, em todo planeta.