Laboratório Experimental de Ciência Cidadã, Cultura Oceânica e Tecnologia
Você está no Ipupiara
existe um oceano livre e um mar aberto por aqui
Ipupiara é um encantado da mitologia tupi: aquele que mora dentro d’água salgada (NAVARRO, 2013). Seus primeiros registros datam da época do Brasil Colônia nas praias de São Vicente, no litoral de São Paulo - e tiveram uma abordagem colonial que não só o descreveram como um monstro marinho, mas também como uma criatura que deveria ser dominada e destruída pelo homem branco (BOSI, 1992; GÂNDAVO, 1575).
Ilustração de como teria sido a “morte de Ipupiara” (GÂNDAVO, 1575).
Naquela época, relatar sua morte também foi uma forma de afirmar a vitória do colono sobre a natureza, da ordem sobre o instinto. A história foi escrita e espalhada dessa forma por muitos anos. Chegaram a criar uma estátua na Praça 22 de Janeiro, que o retratava de forma asustadora mas foi incendiada em 2016.
A estátua, com a representação de Ipupiara, que não existe mais. Autor: Carlos Abelha/G1, 2016.
Já que a história funciona como um conjunto de memórias, que pode influenciar narrativas e desejos de futuros, dessa vez, vamos contá-la de outra forma.
Ipupiara, como retratado em sua autópsia por Côrrea (2006), não é um monstro mas um moço bonito, da mesma família dos botos de água-doce.
A autópsia de Ipupiara (CÔRREA, 2006).
Sua espécie, vive em bandos nas águas salgadas, tem um cérebro muito inteligente e conectado em rede. Ele aparece em noites de lua cheia, perto da orla, e chama moças inquietas para sincronizar sinapses, brincar de BrainNet e desenhar imaginários livres para proteger os oceanos e mares de exploradores.
O primeiro relato de Gândavo (1564), conta que em uma determinada noite Ipupiara aterrorizou uma escrava índígena chamada Irecê. Enquanto na verdade, eles já se encontravam há tempos para planejar futuros livres - assim como eram as coisas, antes da chamada “Fundação” de São Vicente. Quando o Capitão Baltasar Ferreira viu a interação dos dois, golpeou Ipupiara com uma espada. E assim fez sua morte “servir de exemplo”, para manter a separação e o pacto de domínação do homem branco sobre a natureza.
Desde então, Ipupiara virou um espectro livre, que às vezes aparece e às vezes some, assim como o éter que inflamou a queima da estátua indevida. Encantou-se, mas ainda está por aí.
Zona Autônoma sem Fio - ZASF
Ipupiara surge como ZASF, uma proposta de rede wi-fi autônoma para uso experimental e informacional. É uma ação de uso crítico de tecnologias em um mundo cada vez mais mediado por redes e estruturas proprietárias que monitoram e capturam dados.
Uma ZASF é um ponto de reflexão sobre algumas polaridades que emergem: criação de sentido local ou dissolvência na internet; compartilhar e acessar informação livre ou ensinar e aprender a partir da descoberta e do desafio; usar ferramentas comerciais remotas ou manter serviços de rede no próprio computador; etc.
Ela funciona como uma rede localizada em um ambiente x, acessível a qualquer dispositivo que queira se conectar a ela. Uma vez conectado, qualquer tentativa de navegar na internet direcionará o dispositivo para um site local, no caso Ipupiara, inicialmente oferecendo os conteúdos:
Repositórios Abertos e Práticas de Cuidado
Direitos das Zonas Costeiras e Territórios Hidrossociais
Antropoceno e Vulnerabilidade de Populações Costeiras no Brasil
Glossário Decolonial Colaborativo
Exemplos de desenvolvimento e aplicação:
Nhandeflix - uma plataforma de streaming criada por e para comunidades indígenas. Foi desenvolvida como um serviço local baseado em intranet que fornece conteúdo audiovisual indígena acessível por meio de uma rede wi-fi local, sem a necessidade de acesso à internet. A iniciativa aborda o desafio do acesso e o impacto da internet nas práticas culturais em territórios indígenas. Agrega conteúdo selecionado e tem atraído, especialmente, os mais jovens - também engajados na participarem dos aspectos técnicos do desenvolvimento e manutenção da rede.
HERMES (High-frequency Emergency and Rural Multimedia Exchange System) - uma rede local que opera por rádio de ondas curtas/HF, utilizando uma interface visual simplificada, acessível via smartphone ou computador, permitindo a transmissão e recepção de dados (chat, áudio, documentos, fotos, coordenadas de GPS, etc.) que podem ser criptografadas e protegidas por senha pelo remetente.
A documentação desse protótipo encontra-se aberta, para que possa ser replicada em outras comunidades costeiras e pesqueiras de interesse, auxiliando-as na gestão de dados sobre recursos ecossistêmicos locais (como: monitoramento de parâmetros climáticos e ambientais, impactos socioeconômicos das atividades pesqueiras, memória e cultura, etc), para que possam fomentar estratégias táticas para a proteção desses territórios e populações.
Referências
- BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
- CORRÊA, Walmor. Unheimlich – imaginário popular brasileiro. Porto Alegre, 2006 Disponível em https://www.walmorcorrea.com.br/tb9xwueavmf3u42349n0vtea53195m.
- GÂNDAVO, P. M. História da Província de Santa Cruz: A que vulgarmente chamamos Brasil, 1575. Biblioteca Nacional de Portgual. Disponível em https://purl.pt/121/4/res-365-p_PDF/res-365-p_PDF_24-C-R0150/res-365-p_0000_capa-capa_t24-C-R0150.pdf .
- NAVARRO, E. A. Dicionário de Tupi Antigo: a Língua Indígena Clássica do Brasil. São Paulo: Global Editora, 2013.